Sá Carneiro, Jeff Wall e Rembrandt

À beira da estrada, um grupo de homens reunia à volta de um buraco com o tamanho de uma sepultura. Atrás deles, o largo da igreja perde-se no meio das casas degradadas e dos carros deixados ao desespero urbanístico. O muro gigante de prédios do lado oposto: triste, pesado e ainda adormecido. Passei devagar. Tudo parecia parado. A manhã: cinzenta escura, ainda molhada pela chuva que entretanto parou.

Talvez (demasiado) influenciado pelas minhas obsessões com as imagens e textos de Jeff Wall, a cena remeteu-me imediatamente para "The Flooded Grave" (1998–2000). Ao mesmo tempo, a disposição do grupo de homens à volta do buraco fez-me lembrar "The Anatomy Lesson of Dr. Nicolaes Tulp" (1632), a enigmática pintura de Rembrandt. Todos pareciam olhar em diferentes direcções, para fora do buraco. Um deles parecia dar instruções.

Faltou-me no entanto detectar um qualquer erro, à semelhança do erro anatómico (propositado?) do quadro. Há dias que a imagem me vem à memória. Para quê?

Há 28 anos, Francisco Sá Carneiro morrera ali perto.

O buraco estava hoje tapado, com asfalto ainda negro e brilhante, a anunciar o sol que agora substituiu a chuva mas que não consegue dar dignidade a um sítio tão infeliz.



PS - E finalmente - porque sim - em português.

Today's score: Telefon Tel Aviv, "Immolate Yourself".